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BLISS Talk

Relacionamento entre clientes e fornecedores: melhores práticas

 
 

Por Ana Cristina Kashiwagi (WMaster Soluções em Linguagem)

O tradutor é um profissional quase invisível. Em geral, nosso trabalho só é percebido quando cometemos erros: “nossa, o título daquele filme/livro não tem nada a ver, o tradutor errou feio”, “será que o tradutor não sabe que Tell me about it! não é Com certeza!, mas Fale-me sobre!?”. 🤢 Exceto pelo grupo Wow! Mandou bem, tradutor! no Facebook e sua contraparte no Instagram, não vejo muitas postagens por aí elogiando nosso trabalho. E isso não acontece apenas na esfera geral, mas também no relacionamento com clientes, sejam eles pequenas LSPs (Language Service Providers), grandes agências internacionais de tradução ou clientes diretos.

Salvo raras exceções, geralmente individuais, de algum PM (Project Manager) mais querido, não recebemos muitos feedbacks positivos. Talvez por isso, qualquer “reclamação” parece pesada e qualquer erro que cometemos fere o perfeccionismo do qual nos orgulhamos tanto. Um dos maiores pontos de atrito e estresse que observo desde sempre entre tradutores, revisores, Language Leads, PMs e outros profissionais de agências ou clientes finais é a gestão de críticas e a forma como elas são apresentadas. Cuide para não tornar pessoal uma crítica que deve ser profissional: clara, lógica, explicativa e embasada.

 

Além disso, fica a dica: se você fizer parte dessa cadeia e tiver a chance de fazê-lo, elogie os colegas, reconheça um bom trabalho. Isso pode atenuar a tensão nos momentos em que é necessário criticá-los.

 

Nós erramos. Sempre. Motivos para isso não faltam. Prazos cada vez menores, globalização das equipes de trabalho, demandas extremamente específicas para cada projeto, exigências de métricas de controle de qualidade, sistemas automatizados de gestão de fluxos de trabalho, além de redução da remuneração em função da pré-tradução feita por máquinas e do uso da inteligência artificial são apenas alguns dos fatores, cada vez mais presentes em nosso dia a dia, que geram grande pressão sobre todos os profissionais envolvidos. Essa pressão vai sendo repassada, tornando o processo ainda mais estressante e o trabalho mais exaustivo do que já é.

Nos artigos Os sete pecados capitais no mundo da tradução e O que se espera de um(a) Language Lead e o que Language Leads esperam de você, as colegas Roberta Aquino e Mariana Ciocca Alves Passos já falaram de fluxo de trabalho e de diversas funções que cada projeto pode envolver. Minha sugestão para os tradutores é que, na medida do possível, tentem entender qual é a sua posição dentro desse processo e qual é o contexto do material traduzido. Nem sempre o cliente deixa isso claro; se houver espaço para isso, pergunte: “Onde isso vai aparecer?”, “Existe alguma referência para ver o contexto como aparecerá para o usuário?”, “Minha tradução será revisada?”, “Haverá uma revisão técnica ou uma revisão da interface final?” (se for o caso). E apresente suas dúvidas e observações de modo oportuno e claro para que os profissionais que trabalharão posteriormente com esse material possam tomar as decisões mais adequadas. Se você é o cliente ou o agente intermediário do projeto, lembre-se de que se todos os participantes tiverem uma visão clara de todo o processo e do contexto, maior será a chance de um ótimo resultado.

Mesmo com a ampla utilização de portais on-line e fluxos de trabalho automatizados para a disponibilização de material de referência, alocação de tarefas, controle de qualidade e pagamento, as boas relações entre as pessoas envolvidas continuam sendo primordiais para a satisfação pessoal e profissional de todas elas.

Se você é ou trabalha para uma agência de tradução, pequena ou grande, não se esqueça: por mais que a relação entre você e os outros profissionais da equipe seja mediada por sistemas, máquinas e algoritmos, com prazos, demandas e obrigações, todas, todos e todes são pessoas que merecem respeito, educação e, em situações controversas, o benefício da dúvida. Gentileza no trato é um plus. É isso que faz com que a equipe seja uma equipe de fato e não um grupo de pessoas que trabalham no mesmo projeto.

 

Lembre-se: não importa qual é a sua situação dentro de uma equipe; gentileza e educação são excelentes aliados para ter uma boa relação com os colegas e tornar seu ambiente de trabalho (mesmo que virtual) mais agradável.

 

Quando comecei a escrever este artigo, fiz uma lista de situações e “causos” reais que poderia contar e que servissem de exemplo e inspiração para tradutores e clientes. Embora o “reclamar” possa até fazer parte das conversas informais com amigos do meio, achei mais proveitoso elencar algumas práticas para evitar esses conflitos. Vamos a elas.

 

LSPs:

É importante conhecer toda a cadeia de fornecimento com que você trabalha, saber qual é o acordo estabelecido e a disponibilidade oferecida por cada profissional.

Não questione os motivos para um freelancer recusar uma tarefa ou não aceitar um prazo. Talvez com condições diferentes das suas, via de regra a pessoa não tem a obrigação de realizar um determinado volume de trabalho ou cumprir horas de expediente. Claro, é possível negociar, mas dentro dos limites adequados àquele regime de contratação.

Se for perguntar sobre outros projetos nos quais a pessoa trabalha, use o bom-senso e deixe clara sua intenção. Respeite a disponibilidade informada pelo profissional que está contratando. Não importa se a pessoa afirma ser capaz de produzir 500, 1000, 5000 ou 10000 palavras por dia, acate essa informação e se planeje adequadamente, alocando o número de fornecedores necessários para realizar o projeto.

Não mande mais trabalho do que o combinado; você pode até receber a entrega no prazo, mas corre o risco de ter uma queda na qualidade.

Por outro lado, se solicitar uma reserva de disponibilidade, tente ao máximo preenchê-la, pois é muito chato você separar seu tempo e o trabalho não vir.

Se houver mudanças nesse volume de trabalho, quando possível, tente dividir o aumento ou a redução de demanda entre os vários envolvidos, em vez de simplesmente deixar um deles sobrecarregado ou ocioso.

Quando há vários gerentes trabalhando em um mesmo projeto com vários tradutores e revisores, é crítico manter um sistema que dê visibilidade à disponibilidade e à alocação dos vários fornecedores. Pode ser uma simples planilha que permita monitorar o fluxo de trabalho e os volumes projetados e reais.

Mesmo com a utilização de portais e sistemas automatizados para disponibilizar cada tarefa para tradutores e revisores, designers, “testadores” e, em alguns casos, até para o cliente final, é possível manter um mínimo de interação real com os profissionais que trabalham para você. Um e-mail enviado por uma pessoa avisando o profissional que o trabalho está disponível, lembrando das peculiaridades da tarefa e perguntando se há dúvidas, problemas ou questões sobre o prazo faz toda a diferença.

 

Tradutores e revisores:

Ao recusar um trabalho, informe ao solicitante imediatamente para que, se for o caso, a pessoa tenha tempo de encontrar uma substituição. Se possível e cabível, por cortesia, esclareça os porquês da recusa. Esteja ciente de que, se sua condição for de freelancer, você corre o risco de perder sua alocação naquele projeto por um tempo ou “para sempre”, mas não deixe que isso seja motivo para aceitar um trabalho que não poderá cumprir.

Se achar que a pessoa está ultrapassando algum limite ao contestar sua recusa, sinalize isso e esclareça a situação de maneira profissional e educada. Eventualmente, ela pode estar apenas querendo ajudar.

Situações em que o cliente discute a disponibilidade de um freela podem gerar mal-entendidos capazes de minar o relacionamento; dependendo de como se lida com elas, a comunicação pode ficar difícil, restrita, sendo desencadeado um comportamento defensivo de parte a parte, e com certeza o trabalho será prejudicado.

Informe sua disponibilidade com precisão, tente não esquecer de eventualidades e feriados, e avise o cliente quando houver qualquer alteração em seus planos. Se você trabalha em vários projetos e para vários clientes, deve levar todos eles em consideração. Não se superestime; não diga que pode produzir além do que é capaz. Lembre-se de que, em geral, a qualidade importa mais do que a quantidade.

Se receber mais trabalho do que deveria ou do que pode fazer bem, comunique ao solicitante imediatamente e, se não conseguir negociar prazos, recuse o trabalho. Se perceber problemas no gerenciamento do projeto, comunique. Erros de comunicação, falta de visibilidade e enganos podem acontecer, mas não seja vítima deles.

 

 

Não vou entrar na seara de práticas conhecidas no mercado, que chamaria de “predatórias”, como leilão de traduções, alocação do tipo “quem chegar primeiro, pega” ou o uso indevido de traduções automáticas, que desvalorizam o profissional, a profissão e o mercado como um todo. Defendo o uso das máquinas e da tecnologia ao nosso favor e sinto que, nesses casos, é como se estivéssemos competindo com elas, tentando ser “uma máquina um pouquinho melhor”.

 
 

Ana Cristina Kashiwagi é tradutora e revisora inglês-português e atua como Language Lead em alguns projetos para uma grande agência internacional de tradução. Formada em Ciências Biológicas pela USP, entrou no mundo da tradução pelo departamento linguístico de uma LSP brasileira e há quase 30 anos trabalha para agências de tradução nacionais e internacionais, além de clientes diretos. Já foi mais participativa nas mídias sociais tradutórias e nos eventos do setor, mas continua convicta de que o realmente importa no trabalho são as relações interpessoais.