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O tradutor, o intérprete e a ética
Por: Luciana Bonancio
Ética é um conceito complexo que deriva do grego ethos, que significa hábito, comportamento, modo de ser. É uma área da filosofia que discorre sobre a compreensão das noções e dos princípios que sustentam a moralidade e a vida individual dentro da sociedade.
Os códigos de ética das três entidades que representam os tradutores e intérpretes no Brasil, a Abrates, o Sintra e a APIC, abordam como ser ético com clientes, mas falam pouco sobre a ética entre colegas, um ponto que merece muito debate em uma profissão não regulamentada na qual qualquer pessoa pode se dizer profissional sem responder a um código de ética.
Primeiramente, vamos analisar os códigos de ética que regem nossa profissão. O código de ética da Abrates cita a palavra “colegas” em três itens, todos eles se referindo a colegas com quem temos relações de trabalho diretas. O item 5 determina que “ao contratarmos colegas, ofereceremos a compensação apropriada pelos serviços contratados, correspondente às qualificações dos colegas, treinamento, características do projeto, qualidade do serviço prestado, sempre atentos às práticas do mercado”; o item 6 estipula que “dentro de nossas possibilidades, faremos uso de melhores práticas na prestação de serviços a todos que busquem nossa assistência, sejam clientes ou colegas”; e o item 8 estabelece que “devemos estabelecer termos concisos e claros nas transações comerciais com nossos clientes e colegas”. O código do Sintra também cita a palavra em questão três vezes, com o capítulo II abordando especificamente as relações com os colegas: “o tradutor deve tratar os colegas com lealdade, respeito e solidariedade” e “o tradutor deve abster-se de qualquer ato que signifique concorrência desleal a outros tradutores ou exploração do trabalho de colegas, seja em sentido comercial ou outro”. Já o código da APIC cita a palavra apenas duas vezes no item “o intérprete emprestará a seus colegas apoio moral e solidariedade e não se aproveitará de trabalhos onde estiver chamado por colegas para fazer publicidade profissional própria”.
Em resumo, os três códigos recomendam que devemos ser justos ao pagar pelo trabalho dos colegas, usar as melhores práticas ao trabalhar para eles, combinar previamente como será a relação comercial, tratá-los com respeito sem explorá-los, não estabelecer concorrência desleal e não roubar seus clientes. Tudo parece óbvio, mas cada um desses itens tem várias nuances que poderiam ser aprofundadas. Analisaremos abaixo os itens que afirmam que “o tradutor deve tratar os colegas com lealdade, respeito e solidariedade” e que “o intérprete emprestará a seus colegas apoio moral e solidariedade”, enfatizando não a ética na tradução e interpretação, mas sim entre tradutores e entre intérpretes.
Antes do advento das redes sociais, nosso trabalho era mais solitário, conhecíamos alguns poucos colegas que atuavam na nossa cidade e a sensação que tínhamos era de que essa solidão fazia parte do nosso papel invisível na sociedade, as pessoas liam nossos textos e ouviam nossas vozes sem saber quem éramos. Havia poucos eventos profissionais presenciais e era difícil divulgar esses encontros. Com as redes sociais, descobrimos que existem outros seres da nossa espécie, começamos a conversar, organizamos eventos, trocamos ideias e percebemos a complexidade sociológica da nossa profissão, que junta profissionais de tantas áreas diferentes e que é tão democrática ao aceitar todo tipo de formação e experiência de vida. Porém, começamos a julgar uns aos outros e nos dividimos entre grupos de experientes e novatos, com formação e sem formação, extrovertidos e introvertidos, estrelas e grãos de areia. Acabamos nos esquecendo de que a ética também se reflete na vida social virtual.
A pandemia de COVID-19 foi um agravante, pois muitos de nós ficaram quase sem trabalho e precisaram adaptar suas práticas profissionais para sobreviver, baixando tarifas e oferecendo outros tipos de serviços, como aulas ou mentorias. Vimos muitos profissionais qualificados passando necessidade com dignidade e muitas pessoas sem qualificação se aproveitando da situação para vender a ilusão de que nosso mercado é fácil e bastam alguns poucos saberes e um punhado de técnicas para atingir o sucesso. Tempos difíceis de muito julgamento e pouco respeito, pouca lealdade e pouca solidariedade. Época perfeita para uma reflexão sobre o que é ser ético.
Mas o que podemos fazer? Mudar o mundo! Sim, da forma mais simples e básica: começando dentro da nossa “casa”. Cada ato da nossa vida profissional afeta nossa profissão como um todo. Quando cobramos pouco, isso afeta o mercado. Quando não somos éticos, afetamos o mercado e a nossa própria imagem perante a sociedade — lembrando que a sociedade inclui colegas, clientes e o público em geral. Quando tratamos um novato com descaso, aumentam as chances de ele cobrar menos e ter uma visão amarga da nossa categoria. Quando não concordamos com um colega, devemos ter muito cuidado com nossos atos e palavras. Nossa imagem vale ouro. Não podemos esperar que os outros mudem; nós é que temos que refletir e mudar, e nesse aspecto nada é mais efetivo do que educar. Educar a nós mesmos, educar clientes e educar colegas. Educar, ajudar e ser solidário. Cada um de nós tem qualidades e conhecimentos específicos que podem impulsionar o crescimento e a valorização da nossa profissão. Ninguém é melhor do que ninguém em todos os aspectos ao mesmo tempo. Como disse Paulo Freire, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
Luciana Bonancio é tradutora inglês/português há mais de vinte anos. Especialista em tradução na área da saúde, é formada em Medicina Veterinária pela UFPR e pós-graduada em Tradução pela PUC/PR. Membro da diretoria e coordenadora de educação continuada para tradutores da ABRATES.