Security and Quality Standards for the Self-Employed Translator
15 de fevereiro de 2024
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BLISS Talk

A linguagem inclusiva
não pode morrer

(ou algumas reflexões sobre a linguagem inclusiva no meu cantinho da localização)

 
 
 

Por Ingrid Barbosa (LocHouse Translation)

Olá, todas, todes e todos!

Esse tipo de saudação ainda soa estranha para você?

Ou, na verdade, faz tempo que você não ouve algo assim?

Ano passado, eu apresentei um webinar para a BLISS sobre linguagem Inclusiva e, agora, pediram para eu tentar transformar aquele conteúdo em um artigo do BLISS Talk.

Depois de me assistir na telinha do celular (uma experiência bem esquisita para uma pessoa que corre de mídias como eu) e tentar contar todos os meus “né” (uma tarefa impossível), eu me peguei pensando em como eu estava animada com o tema na época, como parecia que todo mundo só falava disso...

Mas este ano já consigo “escutar um silêncio” sobre o assunto. Cheguei a comentar em reuniões internas: “Não tenho visto os clientes pedindo muito. Alguns voltaram atrás.” Será que é uma percepção só minha? Ou será que está todo mundo tão preocupado com a inteligência artificial que a linguagem inclusiva ficou em segundo plano?

Bem, vamos por partes.

Você sabe o que é linguagem inclusiva?

“É uma linguagem que procura dar visibilidade e representatividade para todas as pessoas e todos os grupos sociais.” [i]

Linguagem inclusiva ≠ Linguagem neutra

 É capaz de você ter pensado “Ah tá, então linguagem inclusiva é aquela coisa de chamar todo mundo de todes? É colocar “x”, “@” ou “e” para neutralizar gênero, como em Para noss@s filh@s/ Olá, amigues!/ Todxs xs interessadxs?”

 Não, não é isso. Isso seria só linguagem neutra. A linguagem inclusiva “inclui” muito mais. E faz isso, em geral, usando palavras que já existem na nossa língua.

 Resumindo, a linguagem inclusiva é um conjunto de técnicas simples que buscam usar termos e estratégias diferentes do masculino como solução neutra e genérica, usar termos e imagens que desconstruam estereótipos nocivos e deixar o texto mais simples, rápido de ler e de compreender para reverter uma situação de discriminação e ocultação de grupos socialmente minorizados nas formas de comunicação. [ii]

 E abrindo um parêntesis aqui: um dos grandes motivos de termos como “@” e “X” não serem considerados inclusivos é porque, quando pensamos em acessibilidade digital, eles realmente não são. Os leitores de tela não conseguem ler esses termos levando em consideração este viés da inclusão, pelo menos por enquanto. Até mesmo para gente fica difícil pensar em como pronunciar esses termos fazendo tais marcações.

 Linguagem não sexista

 Na linguagem inclusiva é importante não usar o masculino como forma de universalizar as pessoas.

 Opa, mas peraí. Aprendemos na escola que podemos usar o masculino plural para englobar todo mundo. Isso não é marcação de gênero. É neutro. Está na gramática então está certo. Será? Vamos fazer um teste. Leia as duas frases abaixo.

 Os diretores participaram da reunião.

Os heróis salvaram o mundo.

 Quantas mulheres você visualizou na sala de reunião?

E se você conseguiu ver a Mulher-maravilha ali entre o Super-homem, Batman e um zilhão de outros “heróis no masculino” já está no lucro.

 Como já dizia Simone de Beauvoir, “Sei que a língua corrente está cheia de armadilhas. Pretende ser universal, mas leva, de fato, as marcas dos machos que a elaboraram.

Reflete seus valores, suas pretensões, seus preconceitos”.

 Ainda não acredita que a língua portuguesa é bem sexista? Então, vamos conferir a diferença deste masculino vs. feminino...

 O Governante – que ou aquele que governa

A Governanta – mulher que administra uma casa

Voltando no exemplo acima, poderíamos usar, por exemplo...

 A diretoria participou da reunião.

Um grupo de heróis e heroínas salvaram o mundo.

 E isso é linguagem inclusiva.

 Sem preconceitos

 É simples: se um termo ofende alguém, ele não é inclusivo.

Não use esse tipo de palavra nos seus textos.

Linguagem inclusiva é empatia. É reconhecer que as palavras têm poder e refletem e influenciam nossa cultura.

 Há vários exemplos de termos e expressões que precisam ser cortados do nosso vocabulário. Confira alguns exemplos retirados do Dicionário de expressões (anti)racistas da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Acho que eles por si só já falam tudo.

 

 Usar todas as alternativas possíveis em vez de palavras que carreguem em seu âmago qualquer forma de preconceito. Isso é linguagem inclusiva.

 Exemplos da localização

 Compartilhando aqui algumas experiências...

 Welcome

 Com certeza um dos termos mais usados em projetos de localização. Todos os sites, todos os aplicativos, sejam grandes empresas de tecnologia ou simples aplicativos de dieta, sempre querem dar as “boas-vindas” para todo mundo.

 Em inglês é simples. Maravilha. Mesmo com todas as iniciativas de DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão), eles podem continuar falando Welcome para seu público até os fins dos tempos...

 Mas, no nosso famoso “PT-BR”, Welcome já não é mais uma palavra bem-vinda, literalmente. É só aparecer que nós, tradutoras e tradutores, já começamos a sofrer e a pensar sem parar “E agora, o que fazer?

 “Bem-vindo” não pode porque aí só engloba homens.

“Bem-vindos” só homens de novo e no plural ainda perde o tom de produto personalizado para cada cliente.

“Bem-vindo(a)” fica feio no layout, se for áudio não serve. Engloba pessoas não binárias?

 A verdade é que podemos até cortar termos (uma boa estratégia na linguagem inclusiva), mas com um Welcome de cara como este da imagem abaixo, é bom dar pelo menos um “Oi” para a pessoa que vai começar a usar o aplicativo.

 

 E é isso que, em geral, a gente tem feito, usando expressões como:

 Olá, você está no AppFiction!

Que bom ter você aqui!

 Sim. Um simples Welcome costuma virar sei lá quantas palavras.

 Sofremos, mas a verdade é que amamos passar um tempão escolhendo a expressão ideal e entregar aquele texto que não só vai agradar ao público, mas também vai fazer todas as pessoas se sentirem representadas e acolhidas.

 E isso é linguagem inclusiva.

 Primeiros passos e Veja

 Uma expressão bem comum e uma palavra encontrada em provavelmente em 99% dos nossos trabalhos.

 Elas te incomodam?

 Porque foi um choque para todo nosso pessoal quando recebemos pela primeira vez um erro por ter usado “Veja” e “Primeiros passos”. Até porque o original (em inglês) usava see e steps toda hora.[iii]

 O choque passou. Sempre passa. E entendemos o motivo por trás dessas trocas.

 É só trocar uma palavra, uma simples palavra do texto, para ajudar a combater o capacitismo.

 Por que usar “Veja” se a pessoa lá do outro lado da tela pode estar só “Acessando” o conteúdo com a ajuda de um leitor de tela? Por que usar “Dê os primeiros passos” se a pessoa lá do outra lado talvez não possa dar nenhum passo?

 Empatia. Isso é linguagem inclusiva. É pensar no outro. É pensar em todas as pessoas.

 NÃO PODE MORRER

 Há outros termos e várias expressões a se evitar. Há muitas dicas que podem nos transformar em seres mais inclusivos, nos nossos textos, no nosso falar e até mesmo no pensar e agir.

 Mas a proposta deste artigo não é ser um manual, mas sim uma breve reflexão. Não é conhecimento acadêmico, é uma percepção depois de passar os últimos anos trabalhando em projetos de localização que, de uma forma eu de outra, pediam o uso da linguagem inclusiva.

 E como falei no início deste artigo, a impressão que tenho é que o Hype está passando. Linguagem inclusiva não está mais na moda. Digo isso porque lembra o cliente do “Veja”? Ele voltou atrás. “Veja” pode de novo. Outras contas também estão voltando atrás porque ao que tudo indica com o uso de estratégias de linguagem inclusiva o texto não soa natural.

 É claro que não soa tão natural quanto aquilo que já falamos há gerações. A linguagem inclusiva só vai passar a ser natural se a gente (não só nós que trabalhamos com a língua, como a população em geral) começar a incentivar o uso de certas estruturas e termos em vez de outros. Lembra do choque inicial da equipe? É isso. Ele vem e passa. E o que fica é o aprendizado.

 Estou só no meu cantinho do mundo e posso estar enganada. Mas, recentemente, estive no Web Summit Rio 2024 e assisti a algumas palestras que abordavam a questão da inclusão, equidade e igualdade e quando perguntavam sobre retrocesso, a resposta em geral era que não teve nem avanço de verdade. Muito se discutiu, mas não estamos colocando nada na prática.

 Bem, DEI e linguagem inclusiva andam lado a lado. É por isso que acredito que precisamos continuar fazendo a nossa parte nesta batalha e tentar incluir o máximo de pessoas que pudermos a cada palavra. A linguagem inclusiva não pode morrer.

 *****

 Neste drive você encontra uma lista de referências que usei nas minhas pesquisas e que podem ajudar se você se interessar pelo assunto e quiser saber mais:

https://drive.google.com/drive/folders/1ebXT2nCdKrWzcO-BLrrULckTdchSfsGz

 Você também pode assistir meu webinar para a BLISS (conte todos os meus “né” e depois me envie o total!): https://youtu.be/WtZ9Lsr3sY0


[i] Fonte: https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/inovacao-governamental/gestao-de-carreiras/lins/linguagem-inclusiva

[ii] Fonte: https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/inovacao-governamental/gestao-de-carreiras/lins/linguagem-inclusiva

 
 

Ingrid Barbosa tem mais de 17 anos de experiência em tradução, revisão, gerenciamento e controle de qualidade no mercado de localização. Sócia da LocHouse Translation (http://www.loc-house.com/), atua como Gerente de Qualidade, Coordenadora Linguística e Especialista em Projetos de Localização de Marketing e Transcreation.